XII Congresso Brasileiro de Regulação e 6ª Expo ABAR

Dados do Trabalho


Título

REGULAÇAO DIALETICA NO MERCADO DE GAS

Resumo

A regulação do setor de gás no Brasil é considerada como uma das mais complexas sob o enfoque jurídico. Isso ocorre, em grande medida, em razão da coexistência de regras editadas por diferentes entes da federação. As situações de intersecção regulatória típicas da regulação intersistêmica geram frequentes interações entre órgãos reguladores nas quais, não raras vezes, ocorrem disputas por competências. E assim se dá porque a postura mais comum dos órgãos envolvidos nesses casos é a defesa das respectivas prerrogativas. Ou seja, a conduta padrão é a luta pelo estabelecimento de uma linha que sirva para eliminar qualquer interferência de outros órgãos reguladores.
A regulação dialética representa um enfoque diferenciado. Ao invés encarar a complexidade decorrente da intersecção regulatória como um problema, esta posição doutrinária enxerga uma oportunidade para a produção de regras de melhor qualidade. O diálogo formado por diferentes pontos de vista permite a produção de regras harmônicas e mais próximas da realidade do mercado, o que previne conflitos, acelera inovações necessárias, e proporciona maior previsibilidade e estabilidade ao setor.
Por meio da discussão de casos práticos e da análise do quadro normativo atualmente existente, o presente trabalho procura indicar as vantagens de uma mudança cultural entre os entes reguladores. O dissenso é inevitável, mas, se corretamente administrado, pode ser fonte de subsídios importantes para a melhoria da atuação dos órgãos reguladores. Essa é a essência da ideia relacionada à regulação dialética, que é integralmente aplicável ao setor de gás.

Palavras Chave

Setor de gás. Regulação dialética. Qualidade da regulação. Consensualização. Regulação intersistêmica. Intersecção regulatória.

Introdução/Objetivos

A regulação do setor de gás no Brasil é considerada pela doutrina como uma das mais complexas sob o enfoque jurídico . Boa parte dessa complexidade decorre da coexistência de regras editadas por diferentes entes da federação. Isso ocorre, fundamentalmente, porque os serviços públicos de gás canalizado, de titularidade dos Estados , são tecnicamente vinculados a atividades reguladas pela União Federal.
De fato, em razão de sua intensa relação com a matriz energética do país, a exploração do gás encontra-se inserida no monopólio da União, que abrange as atividades de pesquisa, lavra, importação e transporte , todas situadas na cadeia que leva às redes locais de distribuição. Tais etapas encontram-se imbricadas, o que acarreta, em muitos aspectos, zonas cinzentas de competências regulatórias.
Sob a ótica do regulador, esse quadro revela a existência de uma regulação intersistêmica, marcada, fundamentalmente, pelos fenômenos da sobreposição de competências regulatórias e da dependência regulatória entre diferentes polos de produção normativa. Ou seja, em razão de características técnicas do setor, há pontos de entrelaçamento nos quais se sobrepõem competências de órgãos reguladores diversos e, além disso, regras a cargo de um órgão regulador que dependem do quadro normativo editado por outros reguladores. A inevitável complexidade do sistema normativo traz consigo dúvidas sobre os limites das competências regulatórias e, não raras vezes, conflitos entre os órgãos envolvidos.
No campo jurídico, a intersecção regulatória pode dar ensejo, fundamentalmente, a dois enfoques: uma primeira forma de encarar o fenômeno corresponde à tradicional luta por competências. De acordo com essa lógica, os entes da federação trabalhariam isoladamente e sua postura diante de zonas cinzentas de corresponderia a um esforço destinado a desenhar uma linha capaz de garantir a exclusão de possíveis interferências de outros entes em sua esfera de atuação.
A segunda forma de encarar o problema é pela ótica da regulação dialética. Por este caminho, a intersecção regulatória passa a ser vista como uma decorrência natural da complexidade técnica da atividade regulada e a conduta esperada dos entes envolvidos é a coordenação. Diversas vantagens podem nascer desse enfoque. Diálogo pressupõe transparência dos interesses discutidos e afasta a possibilidade de imposição de uma solução a qualquer das partes. A cooperação entre os órgãos públicos tem a potencialidade para gerar um sistema regulatório harmônico, com regras mais claras e menos custosas aos regulados. Harmonia, além disso, afasta a necessidade de conflitos judiciais, que, além do tempo necessário ao processo, sujeitam as partes às incertezas de uma solução imposta por um órgão menos equipado para lidar com questões de alta complexidade técnica. A proposta do presente artigo, nesse contexto, é, por meio de uma pesquisa bibliográfica e da coleta de dados relativos ao setor, indicar a viabilidade e as possíveis vantagens da regulação dialética no setor do gás.

Metodologia

O trabalho desenvolverá os seguintes itens: 1) delimitação do conceito de regulação intersistêmica no setor de gás; 2) Drawing the line: uma descrição da postura tradicional dos órgãos reguladores nas situações de disputas por competências; 3) Apresentação do conceito de regulação dialética e das vantagens que se pode esperar desse enfoque; 5) discussão sobre as implicações da Lei federal nº 14.134/2021 sobre o conceito regulação dialética e indicação do suporte normativo atualmente existente para a adoção dessa abordagem ; 6) Conclusão.
As fontes utilizadas são a pesquisa bibliográfica e o estudo de casos práticos e das normas aplicáveis à matéria.

Resultados e Discussão

Drawing the line: postura tradicional nas disputas por competência

As situações de intersecção regulatória típicas da regulação intersistêmica geram frequentes interações entre órgãos reguladores nas quais, não raras vezes, ocorrem disputas por competências. E assim se dá porque a postura mais comum dos órgãos envolvidos nesses casos é a defesa das respectivas prerrogativas. Ou seja, o caminho padrão seguido pelos órgãos públicos é a luta pelo estabelecimento de uma linha (line drawing) que torne claras as competências do regulador envolvido e, simultaneamente, exclua a atuação dos demais. É, como observa a doutrina, a resposta padrão verificada nesses casos, que se destina, fundamentalmente, a eliminar a situação de sobreposição de competências ou de dependência regulatória . Essas características podem ser notadas, em boa medida, em casos recentes relacionados ao setor de gás.
O denominado “Projeto Gemini”, ocorrido no Estado de São Paulo, é um exemplo interessante. No caso, a Petrobrás, em parceria com a empresa White Martins, estabeleceu um sistema de liquefação e comercialização de gás oriundo da Bolívia, sem a passagem pelo sistema estadual de distribuição. O órgão regulador estadual editou a Portaria CSPE nº 397/2005, pela qual estabeleceu a obrigatoriedade de aquisição de gás para tal finalidade da concessionária local .
Acionada pelos órgãos federais, a Justiça Federal de São Paulo deferiu tutela antecipada para determinar que a Comissão de Serviços Públicos de Energia CSPE (órgão que à época regulava os serviços de gás no Estado de São Paulo) se abstivesse de qualquer providência ou aplicação de penalidade, por considerar que a competência para regular o fornecimento de gás ao Projeto Gemini seria da União Federal, por meio da ANP. A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal, que, na Reclamação 4210/SP reconheceu a usurpação da competência da Corte em razão da presença de conflito federativo. No bojo da Reclamação, o Estado de São Paulo sustentou ser necessário “preservar a concessão do serviço público de gás canalizado outorgado às concessionárias locais, que investiram bilhões de reais em suas concessões e, bem assim, garantir continuidade desse relevante serviço público, que atende mais de 500 mil usuários paulistas”. A Corte decidiu, de forma unânime, acompanhar os fundamentos apresentados pelo Ministro Ricardo Lewandowski para determinar a cassação da decisão da Justiça Federal, sob o argumento de que a regulação estadual não representaria violação da competência da União .
Outro exemplo concreto desse tipo de postura pode ser identificado no caso do gasoduto Subida da Serra, no qual União Federal e Estado de São Paulo discutem sobre a classificação de um gasoduto autorizado pela ARSESP para reforçar o sistema de distribuição concedido à COMGÁS.
Em breve síntese, pela Nota Técnica NT.F-0030-2019, a agência reguladora estadual autorizou investimentos pela concessionária COMGÁS no montante de R$ 473,5 milhões para a construção de um gasoduto destinado a ligar fontes situadas no litoral de São Paulo à rede de distribuição da Região Metropolitana de São Paulo e Baixada Santista .
A proposta foi rebatida no âmbito da União Federal pela Nota Técnica nº 2/2021/SIM/ANP-RJ. Pelo documento, a ANP destacou tratar-se de gasoduto de transporte, que se situaria, por essa razão, fora da competência regulatória da agência estadual . O mesmo entendimento foi sustentado na Nota Técnica nº 5/2021/SIM-CGN/SIM/ANP-RJ, da qual se destaca:
“Em relação ao sustentado pela ARSESP de que é o órgão competente para definição das regulamentações referentes à prestação dos serviços locais de gás canalizados no Estado de São Paulo, e que o projeto é de interesse local do Estado de São Paulo, não se desconhece a competência da Agência Reguladora Estadual para regular as atividades relacionadas aos serviços locais de gás canalizado, nos termos do art. 25, § 2º, da CRFB.

Todavia, a questão posta nos autos não se refere à atividade constitucionalmente atribuída ao ente estadual, pois, conforme já amplamente demonstrado, trata-se de nítido gasoduto de transporte, e, como tal, atrai a competência da ANP, nos termos do art. 8º, e incisos, da Lei nº 9.478/1997, tendo em vista ser atividade monopólio da União (art. 177, IV, da CRFB).”.
A análise desses dois casos revela a presença das características acima citadas nas disputas por competências, típicas em situações de intersecção regulatória. Nota-se a incisiva defesa das prerrogativas dos órgãos envolvidos, na tentativa do estabelecimento de uma linha clara destinada a excluir a atuação dos demais. A sobreposição de competências ou a dependência regulatória são enxergadas pelos envolvidos como fatores nocivos a serem eliminados.
Ocorre que essa complexidade, apesar de tida como indesejada nas modernas teorias voltadas para a qualidade da regulação , também pode apresentar algumas vantagens. E essa constatação é importante porque, conforme adiantado, em alguns setores (como é o caso do gás), ela é inevitável. Esse detalhe foi notado por Robert Ahdieh, em texto no qual ele defende a adoção de uma regulação dialética.

Regulação dialética

Conforme observa Robert Ahdieh há um crescente universo de interações regulatórias de acordo com o qual as funções de um órgão regulador são moldadas pelas ações ou omissões de outro. E disso resulta, com destaca o autor, o surgimento de um regime regulatório caracterizado pela intensa interação e pela mescla entre conflitos e cooperações .
De acordo com esse enfoque, a busca pela eliminação de qualquer complexidade na tentativa de alcançar a certeza e a clareza do direito ofuscam a importância da interação de órgãos reguladores através das linhas de suas respectivas competências. A sobreposição de competências regulatórias e a dependência regulatória, além de inevitáveis, são, em alguma medida, úteis porque capazes de dar ensejo a uma regulação intersistêmica de alta qualidade técnica.
A ideia de Ahdieh tem raiz no trabalho de Robert Cover , que, diante de críticas aos avanços da jurisdição federal sobre a jurisdição estadual nos Estados Unidos, escreveu um texto no qual apontava vantagens da denominada “redundância jurisdicional”. De acordo com o autor, em primeiro lugar, a redundância representaria um limite à corrupção judicial, porque a competição entre diferentes juízes poderia afastar os interesses individuais no processo de decisão. Além disso, essa mesma competição seria eficaz também para afastar vieses ideológicos nas decisões judiciais. Finalmente, a redundância seria útil para induzir a inovação, por submeter os julgadores a uma fonte externa de pressão e de ideias.
O trabalho de Ahdieh, nessa linha, aponta quatro benefícios principais presentes em um sistema normativo marcado pela sobreposição de competências e pela dependência regulatória. Em primeiro lugar, de acordo com o autor, a interação entre diferentes reguladores pode contribuir para uma melhor compreensão dos indivíduos ou atividades que são objetos da regulação. Em segundo lugar, esse melhor conhecimento pode resultar em maior efetividade das normas. Terceiro, a interação pode favorecer a inovação. Quarto, todos esses elementos podem servir para integrar diferentes sistemas regulatórios .
Em breve síntese, a competição proporciona um aprendizado mútuo para os diferentes reguladores, o que permite uma aproximação maior deles em relação à complexa realidade do objeto regulado. Essa circunstância confere mais qualidade técnica às regras produzidas, diminui o espaço para erros e confere maiores chances de as normas serem efetivamente cumpridas e fiscalizadas. Além disso, a interação e o diálogo interinstitucional trazem diferentes pontos de vista ao processo de decisão, o que abre o espaço para a criação de soluções novas quando necessário. Por fim, a integração de sistemas regulatórios dá mais estabilidade às normas, evitando mudanças bruscas no quadro normativo.
Essa relação entre órgãos reguladores pode se exteriorizar de diferentes maneiras, relacionadas aos diversos graus de dependência entre as regras a serem produzidas. Em um extremo, pode haver uma relação hierárquica, na qual uma entidade necessite, obrigatoriamente, observar as regras editadas por outra entidade. Neste caso, não haverá interação, mas simples obediência. No outro extremo, há as situações em que não há vinculação alguma entre as regras. Nesse contexto, qualquer interação entre os reguladores será exclusivamente voluntária e, portanto, representará mero diálogo entre os envolvidos. Finalmente, há uma situação intermediária, na qual há algum grau de dependência, mas não há hierarquia entre os órgãos envolvidos. Nesses casos, haverá o que Ahdieh denomina regulação dialética, que, embora seja voluntária é, segundo afirma o autor, inevitável.
A regulação dialética, com esses contornos, apresenta alguns traços característicos. Em primeiro lugar, há a necessidade da existência de algum grau de dependência e de algum grau de independência entre os órgãos envolvidos. Com relação à independência, é preciso que haja um diálogo efetivo, de modo que nenhuma entidade reguladora possa silenciar ou impor silêncio ou uma decisão unilateral à outra. A par disso, a regulação dialética deve ser marcada pela presença simultânea de alinhamento e de divergência entre as entidades. Nesse sentido, há a necessidade da existência de valores e objetivos comuns. Ainda assim, é preciso algum grau de divergência para que seja possível aproveitar ao máximo a pluralidade e a diversidade de pontos de vista sobre o problema examinado.

A Lei federal nº 14.134/2021 e a regulação intersistêmica

O setor do gás apresenta as características que se aproximam do conceito de regulação dialética acima descrito. Isso porque é possível identificar, com alguma clareza, pontos de sobreposição de competências regulatórias e situações de dependência regulatória. Essa realidade, de certa forma, foi evidenciada com o advento da Lei federal nº 14.134/2021, porque o diploma, em alguns aspecots, deu ensejo a uma ampliação do alcance da regulação federal sobre as atividades reguladas pelos Estados.
A Lei federal nº 14.134/2021, denominada Nova Lei do Gás, foi promulgada com o objetivo de aumentar a competitividade no setor e, consequentemente, reduzir os custos do gás natural ao consumidor final. Alguns dispositivos acirraram discussões já existentes sobre os limites das competências regulatórias relacionadas ao mercado de gás. Dentre os focos de preocupação dos Estados, destacam-se a competência conferida à ANP para classificar dutos de transporte e as modificações que se referem à autorização da atividade de comercialização de gás aos usuários livres.
O regramento anterior, constante da Lei federal nº 11.909/2009, estipulava que a comercialização de gás natural constituiria uma atividade econômica regulada e fiscalizada pela União . Embora houvesse, no campo doutrinário, dúvida sobre a constitucionalidade dessa competência regulatória da União , a Agência Nacional do Petróleo já possuía atribuição para autorizar a prática da atividade de comercialização de gás natural. Essa prerrogativa, contudo, restringia-se à esfera de competência da União , o que, de forma implícita, reconhecia a existência de competência dos Estados para autorizar a atividade de comercialização de gás em suas respectivas esferas.
A Lei federal nº 14.134/2021 fez uma modificação nas competências da ANP descritas na Lei federal nº 9.478/1997 ao retirar a limitação da atuação do órgão federal à esfera da União . O objetivo, ao que tudo indica, foi deixar claro que a competência para autorizar e fiscalizar a atividade de comercialização de gás deveria passar a ser exclusivamente da União, opção que também pode ser depreendida da comparação entre o art. 47 , da Lei federal nº 11.909/2009 e o texto do art. 31, §2º , da Lei federal nº 14.134/2021. Como é possível notar, a nova redação dada a este dispositivo, ao tratar da autorização para a atividade de comercialização de gás natural, deixa de ressalvar a competência estadual, para prever de forma expressa que a competência para autorizar tal atividade é da ANP.
Essa previsão, contudo, por não ter atingido a raiz constitucional da competência estadual, manteve hígida a sobreposição de competências regulatórias entre a União e os Estados já existentes nesta seara. Ou seja, em matéria de autorização da atividade de comercialização de gás, devem continuar a conviver as regras oriundas da ANP com as regras dos Estados que, ao organizarem seus respectivos serviços públicos de distribuição de gás canalizado, estipulem regras também para a atividade de comercialização de gás.
No âmbito do Estado de São Paulo, por exemplo, a Lei Complementar estadual n° 833/1997 atribuiu à Comissão de Serviços Públicos de Energia CSPE a regulação dos serviços de gás canalizado, entidade posteriormente substituída pela Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo - ARSESP. O Decreto estadual nº 43.889/1999, nesse contexto, ao dispor sobre o regulamento de concessão e permissão dos serviços públicos de gás canalizado no Estado de São Paulo por ocasião da privatização, previu a necessidade de autorização da CSPE para o exercício das atividades correlatas (dentre as quais se situa a atividade de comercialização) .
Esse mesmo formato foi mantido após a criação da ARSESP. Criada pela Lei Complementar estadual nº 1.025/2007, esta agência reguladora estadual possui, dentre suas competências, a regulação dos serviços de gás canalizados , no bojo da qual lhe são conferidas prerrogativas expressas para autorizar a atividade de comercialização de gás natural e para defender a concorrência no setor . A medida é considerada pela doutrina como uma decorrência lógica da competência dos Estados prevista na Constituição Federal .
Além da sobreposição de competências regulatórias, também fica clara a existência de dependência regulatória em matéria de comercialização de gás. Isso porque a forte intersecção com a competência do Estado para regular os serviços locais de gás canalizado sempre impôs limites às competências da União, que, desde cedo, foram reconhecidos pela legislação federal . Nesse sentido, nota-se que o conceito de consumidor livre, agente econômico que pode adquirir gás no mercado livre, sempre foi condicionado às disposições da legislação estadual .
Essa mesma relação de dependência pode ser verificada na diferenciação normativa entre as atividades de transporte e distribuição. Nesse assunto, verifica-se, conforme adiantado, outra modificação importante constante da Nova Lei do Gás relacionada ao reconhecimento, em favor da ANP, da prerrogativa de classificar um gasoduto exclusivamente com base em critérios técnicos relacionados ao diâmetro, pressão e extensão .
O tema, como bem demonstra o caso do Gasoduto Subida da Serra, é fonte de discussões acaloradas, porque a classificação altera não apenas as competências, como, por consequência, todo o quadro regulatório incidente sobre a atividade. Ou seja, a extensão do sistema de distribuição estadual pode depender de uma decisão expressa pela regulação a cargo da ANP, o que traz consigo implicações relevantes para o equilíbrio dos sistemas de transporte e de distribuição.

Regulação dialética no setor de gás

Os exemplos citados, notadamente com base nas disposições da Lei federal nº 14.134/2021, revelam a presença dos parâmetros doutrinários relacionados à regulação dialética. Como visto, o setor é marcado pela presença de uma regulação intersistêmica, na qual é possível verificar a existência de sobreposição de competências e de dependência regulatória. Há, como sabido, algum grau de dependência entre os órgãos decorrente da vinculação de seus respectivos sistemas normativos. Mas, por outro lado, essa vinculação não prejudica a independência existente entre os entes.
Inegavelmente, há objetivos e valores comuns entre os órgãos reguladores das diferentes esferas, como a defesa da concorrência, a preocupação com a segurança, a expansão dos mercados e da infraestrutura necessária etc. Por outro lado, há também algum grau de dissenso entre os envolvidos, como bem demonstraram os casos práticos comentados.
Nesse contexto, o passo para a superação da clássica postura de “desenhar a linha” em direção à regulação dialética depende da compreensão de um fator fundamental que se encontra na base da regulação dialética: o diálogo. Conforme se verifica das lições acima citadas, o diálogo esperado não pode ser fruto de pura voluntariedade, na medida em que a relativa dependência existente entre os órgãos envolvidos impõe a interação. Por outro lado, esse diálogo não pode ter traços de uma relação hierárquica, porque a independência que deve existir entre os envolvidos impede a imposição de silêncio ou de qualquer decisão unilateral de parte a parte.
Trata-se de um diálogo qualificado, porque, sendo vedada qualquer hierarquia ou imposição de vontade, a decisão deve ser fruto da do consenso, ou seja, do convencimento alcançado pela discussão entre partes igualmente capacitadas. A proposta não se distingue do que a nossa doutrina chama de consensualização, para se referir a um conjunto de normas e estruturas destinadas a viabilizar o consenso na execução das funções administrativas. Como ensina Thiago Marrara, esses instrumentos de atuação se constituem em “meios para a busca do consenso nas relações entre Estado e Administração, nas relações entre entes públicos ou em relações entre órgãos de um mesmo ente. Como meios, sua existência por si só não garante consenso. É perfeitamente possível que eles estimulem até dissensos em certos casos” .
E talvez esse seja o ponto central da ideia de regulação dialética. Se as partes, por um lado, são forçadas a interagir em situações de dissenso para alcançar uma solução e, por outro, não podem impor sua vontade à outra parte, é preciso que o diálogo estabelecido revele um esforço para convencer e, em alguns casos, disposição para ceder. Essa forma de diálogo, aliás, foi expressamente inserida na Lei de Processo Administrativo Federal pelas alterações trazidas pela Lei federal nº 14.210/2021.
Como é possível notar da nova redação dada ao diploma, as decisões que envolverem três ou mais setores diferentes no âmbito da Administração Federal devem ser tomadas de forma coordenada. Para tanto, o art. 49-F determina que eventual dissenso seja apresentado de forma fundamentada e acompanhado de propostas de solução e de alteração necessárias para a resolução da questão. Isso significa que as partes envolvidas serão forçadas a dialogar e, em caso de discordância, a postura do órgão não pode se limitar mais a uma negativa vazia que represente um obstáculo para o prosseguimento da proposta. Ao contrário, exige-se, agora, uma posição ativa que, de forma colaborativa, contribua para a solução do dissenso indicado.
A vantagens da regulação dialética citadas por Ahdieh são perfeitamente aplicáveis ao setor do gás. Com efeito, a combinação de pontos de vista de órgãos reguladores altamente qualificados dos âmbitos federal e estadual pode contribuir para o melhor conhecimento da realidade da atividade e dos sujeitos regulados. Desse conhecimento mais profundo, podem surgir normas regulatórias mais aderentes à realidade, que possam ser cumpridas e fiscalizadas de forma mais adequada. Além disso, essa interação entre órgãos reguladores de instâncias diversas inegavelmente pode acelerar a inovação. Finalmente, a atuação coordenada entre reguladores de diferentes esferas pode contribuir para uma maior estabilidade jurídica no setor ao evitar mudanças bruscas que possam causar instabilidades.
Além disso, o diálogo contribui para a transparência dos interesses debatidos, o que diminui o risco de corrupção ou de captura do regulador. A ausência de imposição de vontade entre os envolvidos, por seu turno, acarreta a desnecessidade de acionamento do Poder Judiciário, órgão reconhecidamente menos equipado para resolver questões de alta complexidade técnica em comparação com os próprios órgãos reguladores.
Do ponto de vista normativo, é preciso destacar que há uma decisão clara do legislador pelo caminho da coordenação entre os órgãos reguladores. A Lei federal nº 14.134/2021, na linha do que já vinha previsto na Lei federal nº 11.909/2009, determinou à União, de forma expressa, a articulação com Estados objetivando a harmonização e o aperfeiçoamento das normas . Além disso, a política nacional traçada para o setor também traz instrumentos destinados à harmonização do quadro regulatório. Nesse sentido, nota-se do Decreto federal nº 10.712/2021 a intenção da criação de um “Pacto Nacional para o Desenvolvimento do Mercado de Gás Natural”, destinado a promover a harmonização das regulações estaduais e federais . A mesma ideia consta da determinação contida no decreto para que a aplicação da Lei federal nº 14.134/2021 observe, entre outras diretrizes, a harmonização entre as regulações federais e estaduais .

Conclusão

Na lição de Douglass North, “as instituições reduzem a incerteza ao conferir uma estrutura à vida cotidiana” . O principal papel das instituições, de acordo com essa tese, é reduzir a incerteza e dar estabilidade às relações humanas. Nas palavras deste mesmo autor, “quanto maiores forem a especialização e a quantidade e variabilidade dos atributos valorativos, maior deverá ser a relevância atribuída a instituições confiáveis, que permitam aos indivíduos tomar parte em contratações complexas com um mínimo de incerteza quanto ao cumprimento dos termos do contrato .
O mercado de gás no Brasil representa um bom teste para a teoria de North. A alta complexidade técnica das atividades a ele relacionadas revela a necessidade de instituições de boa qualidade como instrumentos destinados à redução das incertezas nas relações contratuais. Mas como alcançar essa finalidade se, em diversos pontos, as atividades ficam sujeitas a regras emitidas e fiscalizadas por diferentes entes da Federação?
Tradicionalmente, as competências regulatórias têm sido exercidas pelos titulares de forma isolada, dentro das linhas demarcatórias desenhadas por eles próprios, com o explícito intuito de afastar a interferência de outras autoridades. Essa postura, contudo, ignora possíveis contribuições que poderiam surgir a partir de outros pontos de vista, o que torna a decisão produzida tecnicamente mais pobre, mais distante da realidade regulada, menos permeável a inovações e, por consequência, com maiores chances de erros. Além disso, quando exercida com o propósito de afastar possíveis interferências, a competência regulatória se torna um motivo frequente para a instalação de conflitos entre os polos de produção normativa. Nestes casos, a matéria invariavelmente é levada ao Poder Judiciário, que, além de estar sujeito a todos os entraves relacionados ao processo judicial, tem menos condições técnicas para decidir do que as próprias partes envolvidas.
A regulação dialética, nesse contexto, representa um enfoque diferenciado. Ao invés encarar a complexidade decorrente da intersecção regulatória como um problema (a ser resolvido pelo Judiciário), esta posição doutrinária enxerga uma oportunidade para a produção de regras de melhor qualidade. O diálogo formado por diferentes pontos de vista permite a produção de regras harmônicas e mais próximas da realidade do mercado, o que previne conflitos, acelera inovações necessárias, e proporciona maior previsibilidade e estabilidade ao setor.
O quadro normativo atualmente existente no setor de gás abarca essa forma de regulação dialética. Falta, ao que tudo indica, uma mudança cultural entre os entes reguladores para que estes passem a enxergar as situações de intersecção regulatória não como uma ameaça às suas próprias atribuições, mas como uma oportunidade para a produção de decisões e regras de melhor qualidade.

Referências Bibliográficas

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo, Regulação e poder de polícia no setor de gás. Revista de direito público da economia: RDPE. Belo Horizonte, Fórum, 2003.

MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 2, n. 2, p. 509-527, 2015.

NORTH, Douglass C. Instituições, mudança institucional e desempenho econômico. São Paulo, 2018, Três Estrelas.

ROBERT Ahdieh B., Dialectical Regulation, 38 CONN. L. REV. 863 (2006). Disponível em: https://scholarship.law.tamu.edu/facscholar/1208.

Robert M. Cover, The Uses of Jurisdictional Redundancy: Interest, Ideology, and Innovation, 22 WM. & MARY L. REV. 639 (1981).

SUSTEIN, Cass R. Simpler: the future of government. New York: Simon & Schuster, 2013.

Área

Petróleo, Biocombustíveis e Gás Natural

Instituições

PGE/SP - São Paulo - Brasil

Autores

LUIZ FERNANDO ROBERTO