XII Congresso Brasileiro de Regulação e 6ª Expo ABAR

Dados do Trabalho


Título

O PRINCIPIO DA ISONOMIA MATERIAL APLICADO A REGULAÇAO DO BIOMETANO NO SETOR DE GAS

Resumo

A Nova Lei do Gás (Lei nº 14.134, de 08/04/2021) e o Regulamento do Gás (Decreto nº 10.712, de 02/06/2021), incluíram, dentre seus dispositivos, previsão de tratamento equivalente entre o gás natural e o biometano. O presente artigo, mediante abordagem dedutiva, desenvolvido a partir de pesquisas bibliográficas e documentais, buscou mapear as peculiaridades do biometano e discutir os limites para a equiparação do tratamento regulatório. Propõe-se assim, a adoção do princípio da isonomia material, que considera as circunstâncias específicas do biometano em relação ao gás natural, para a definição do tratamento normativo mais adequado e aderente à realidade desse biocombustível.

Palavras Chave

Biometano. Biocombustíveis. Isonomia. Nova Lei do Gás. Gás Natural.

Introdução/Objetivos

O art. 3º, §2º, da Lei nº 14.134, de 8 de abril de 2021 (“Nova Lei do Gás”), e o art. 4º do Decreto nº 10.712, de 2 de junho de 2021 (“Regulamento do Gás”), determinam que o biometano – assim como outros gases intercambiáveis com o gás natural – deverá receber tratamento regulatório equivalente ao gás natural, desde que atendidas as especificações da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP.
Embora haja intercambialidade entre o biometano e o gás natural em razão de suas propriedades físico-químicas, o biometano apresenta inúmeras peculiaridades, especialmente quanto a sua cadeia produtiva, às externalidades e aos impactos ambientais e à maturidade de mercado.
Nesse contexto, o objetivo deste artigo é discutir os limites para a equiparação do tratamento regulatório previsto na Nova Lei do Gás e no Regulamento do Gás, uma vez que a interpretação e aplicação desses dispositivos sem considerar as circunstâncias específicas desse biocombustível, poderiam prejudicar ou até mesmo inviabilizar sua expansão em território nacional.

Metodologia

Conforme mencionado, a pesquisa tem por objetivo investigar os limites para a equiparação do tratamento regulatório entre o biometano e gás natural, nos termos previstos no art. 3º, §2º, da Nova Lei do Gás, e o art. 4º do Regulamento do Gás.
Adotando-se uma metodologia baseada em uma abordagem indutiva, desenvolvida a partir de pesquisas bibliográficas e documentais, a pesquisa busca mapear as características do biometano que devem ser consideradas quando da aplicação dos já mencionados dispositivos. Nesse sentido, destacam-se as especificidades de sua produção e as externalidades socioambientais de sua utilização, além de seu relevante papel para o desenvolvimento sustentável brasileiro.

Resultados e Discussão

Com efeito, o biometano possui características que permitem a sua intercambialidade com o gás natural em todas as suas aplicações (IEA, 2020), seja como combustível veicular, industrial ou residencial ou para fins na rede de distribuição de gás natural ou transportado na forma de gás comprimido ou liquefeito. Apesar da referida intercambialidade justificar tratamento equivalente para determinados casos, tal como estabelecido na Nova Lei do Gás e no Regulamento do Gás, é preciso destacar, porém, que a cadeia produtiva de biometano apresenta peculiaridades que devem ser consideradas quando do tratamento regulatório desse biocombustível.
Primeiramente, cabe destacar que o biometano é produzido a partir do biogás, gás composto por metano (CH4), dióxido de carbono (CO2) e outros componentes em baixas concentrações como umidade, sulfeto de hidrogênio (H2S), amônia (NH3) e, dependendo da origem do substrato, siloxanos (PROBIOGAS, 2015). O biogás, por sua vez, é produzido por meio de um processo denominado biodigestão, ou digestão anaeróbia: trata-se de um processo microbiológico que degrada substratos orgânicos, na ausência de oxigênio.
Nesse sentido, a produção de biometano deve ser considerada não só como uma forma de produção de biocombustível, mas também como uma forma de tratamento e de aproveito energético de resíduos orgânicos. Note-se, nesse ponto, que a biodigestão para produção de biometano pode ser realizada partir de diferentes substratos, isto é, a partir de material orgânico oriundo dos mais diversos setores, tais como da agropecuária (dejetos de animais e resíduos de produtos agrícolas), da indústria (abatedouros, fecularias, usinas sucroenergéticas e outras), do saneamento (resíduos sólidos urbanos e esgoto), dentre outros. Justamente em razão disso, é preciso destacar que a produção do referido biocombustível depende da localização do material orgânico a partir do qual é produzido e, por isso, frequentemente sua produção ocorre em localidades distantes das infraestruturas de gás natural existentes no território nacional (CIBIOGÁS, 2020; EPE, 2019).
Além dessa peculiaridade relativamente à localização da produção do biometano – que dificulta a injeção do gás nas infraestruturas de transporte e distribuição de gás natural -, é preciso considerar que o ciclo de vida do biometano também apresenta externalidades positivas que nem sempre são refletidos em seu preço final.
Frise-se, por oportuno, que a produção de biogás, por constituir também uma forma de tratamento e de aproveitamento energético de resíduos, possui papel para a expansão de práticas de economia circular (ANTON FAGERSTRÖM et al., 2018). Nesse sentido, a aplicação do biogás na produção de biometano como uma fonte de energia apresenta externalidades positivas, é benéfica não só não sob a ótica ambiental, como também a partir das perspectivas econômica e social.
Do ponto de vista ambiental, destaque-se que o CH4 e o CO2 eliminados naturalmente em processos de decomposição, são gases que apresentam elevada contribuição para a intensificação do efeito estufa. Em um cenário em que o processo de biodigestão não acontece dentro de maneira controlada e com captura do gás, esses gases acabam sendo emitidos para a atmosfera. Assim, com a produção de biogás e, consequente, biometano, é possível evitar significativamente a emissão desses Gases de Efeito Estufa (GEE). Além disso, por meio da substituição de combustíveis fósseis como diesel e gasolina, é possível reduzir ainda mais os impactos para o aquecimento global. Ou seja: além de contribuir para a redução dos impactos da destinação inadequada dos resíduos e a sobrecarga dos aterros (GIZ, 2017), a produção e o uso do biometano pode ser uma importante solução de descarbonização dos setores agropecuário, energético, industrial e de transportes - os mais associados à emissão de GEE no Brasil (ABiogás, 2018).
Sob a ótica econômica, por sua vez, o biometano se destaca como uma oportunidade para empresas locais desenvolverem tecnologia nacional. Considerando que o uso do biometano como combustível veicular para a frotas de ônibus urbanos, caminhões de coleta de lixo e carros de passeio é uma realidade na Europa (MME/EPE, 2014), vislumbra-se a possibilidade de adoção da tecnologia em âmbito nacional. Isso poderia gerar redução da poluição atmosférica em grandes cidades e melhoria da qualidade do ar pela substituição de diesel em veículos que circulam em área urbana.
Por fim, sob o ponto de vista social, o desenvolvimento da cadeia do biogás também traz benefícios à medida em que amplia a demanda por mão de obra e contribui para o desenvolvimento local, impactando positivamente o sistema tributário com a criação de empregos e maior arrecadação de impostos (ABiogás, 2018).

Conclusão

Considerando de forma holística todas essas externalidades positivas do biometano, é impossível ignorar sua conexão direta com os compromissos globais de constantes na agenda mundial adotada durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável de setembro de 2015.
Com base nas externalidades apontadas acima, a expansão da produção do biometano em território nacional favorece diversos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) (WBA, 2018), previstos na referida agenda mundial, dentre os quais se destacam: o ODS 2 (Agricultura Sustentável); o ODS 5 (redução o ODS 6 (Água potável e saneamento), o ODS 7 (Energia Limpa e Acessível), o ODS 9 (Indústria, inovação e infraestrutura), o ODS 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis), o ODS 12 (Consumo e Produção Responsáveis) e o ODS 13 (Ação contra a mudança global do clima). Nesse contexto, tendo em vista relevância do biometano para a promoção do desenvolvimento sustentável, o presente trabalho propõe que o art. 3º, §2º, da Nova Lei do Gás e o art. 4º do Regulamento do Gás não sejam interpretados a partir da isonomia formal – isto é, a partir do preceito segundo o qual a lei deva tratar todos abstratamente iguais, independentemente das circunstâncias concretas -, mas sim que sejam interpretados a partir do princípio da isonomia material, de modo a considerar a realidade e as especificidade de cada combustível. Nesse sentido, nas palavras de NERY JUNIOR (2010, p. 99):
“Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades.
Por isso que são constitucionais dispositivos legais discriminadores, quando desigualam corretamente os desiguais, dando-lhes tratamentos distintos; e são inconstitucionais os dispositivos legais discriminadores, quando desigualam incorretamente os iguais, dando-lhes tratamentos distintos”.
Assim, para fazer jus aos aspectos específicos do biometano, o presente artigo propõe a necessidade da adoção do princípio da isonomia material, que considera as circunstâncias específicas deste biocombustível em relação ao gás natural, para a definição do tratamento normativo mais adequado e aderente à realidade do biometano.

Referências Bibliográficas

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Área

Temas Transversais: Aspectos Jurídicos e Institucionais da Regulação; Transparência e Controle Social; Melhoria da Qualidade da Regulação; Governança Regulatória; Análise de Impacto Regulatório

Instituições

Da Fonte Advogados - São Paulo - Brasil, Instituto 17 - São Paulo - Brasil

Autores

ROBERTA MATSUBARA ARAKAKI, VANICE NAKANO, LEIDIANE FERRONATO MARIANI, JULIA SANTA ROSA DE LUNA, ALESSANDRO SANCHES PEREIRA